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A pergunta mais importante

por Suene Honorato
Fotografia: Floresta Virgem – Marc Ferrez (Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles).

Suene Honorato é professora de Literatura na Universidade Federal do Ceará, onde desenvolve pesquisa sobre literaturas indígenas. Atualmente faz estágio pós-doutoral sobre o conceito de “identidade” em textos indígenas. Os textos a seguir fazem parte de um diário de pesquisa do pós-doutorado. Publicou os seguintes livros de poesia: N’oré îukaî xûéne? (Patuá, 2020), Vinde, e poetizaremos (Plebeu Gabinete de Leitura; Sem Nome Editora, 2022) e E se eu fosse máquina (Longarinas, 2022).


A pergunta mais importante

Já (ou)vi mais de uma vez Ailton Krenak contar uma conversa com Davi Kopenawa Yanomami sobre os “brancos”. Davi ainda não conhecia bem o mundo fora da casa coletiva em Watoriki. Primeiro, perguntou sobre a quantidade de “brancos”: “são muitos?”. Ailton não queria mentir ao amigo, mas também não queria assustar. Então disse que sim, que eram muitos, como as folhas das árvores. Davi pensou, pensou e disse: “e o que eles comem?”. De novo, Ailton, com cuidado, disse a verdade: “eles comem tudo o que veem pela frente. Comem terra, comem floresta, comem ouro, comem o planeta”.

No seminário Desnaturada (Fortaleza, 2022), Ailton insistiu – como vem fazendo mais recentemente – na ideia de que a espécie humana está comendo o planeta. A conversa com Davi foi outra vez lembrada. Nessa ocasião, Ailton não recontou a terceira pergunta de Davi, que é para mim a mais importante. Depois de saber que os “brancos” são muitos e comem tudo o que veem pela frente, Davi perguntou: “e onde eles cagam?”. E, de novo, a resposta incisiva de Ailton: “eles cagam em todo lugar”.

Uma parcela ínfima dos domicílios em centros urbanos têm rede de água e esgoto. No conjunto habitacional em que nasci e morei por mais de 20 anos, me lembro quando a rede de esgoto foi instalada, no final da década de 1980. Dali em diante achei que toda casa tinha rede de esgoto. A maior parte dos trajetos que eu fazia em direção a outros bairros de Goiânia passava sobre a ponte do córrego Botafogo, um pequeno rio com as margens concretadas onde desaguavam grandes tubos de esgoto. Diz uma lenda familiar que ali eu joguei fora a chupeta de criança, me livrando do primeiro dos meus vícios e mostrando que estava apta a novos estágios rumo à vida adulta. Ritual de passagem. Anos depois, morando no centro de Campinas (SP), vi a enxurrada crescer quase cinquenta centímetros em minutos durante uma chuva torrencial, levando pela rua grandes sacos de lixo colocados nas calçadas. Sob aquela rua sufocava um rio encanado, invisível para mim até aquele momento. O volume da enxurrada demarcava sua existência.

A melhor maneira que a civilização encontrou para lidar com a merda que se caga foi, até agora, assassinar as águas onde essa merda é lançada. Merda, plástico, lixo. Rios mortos. Terras devastadas com mercúrio e agrotóxico. Peixes, crustáceos, plantas aquáticas e quem os consome: gentes envenenadas. Nem todo o fungo do universo conseguiria transformar o lixo que humanos produzem em matéria orgânica. O plástico demora décadas (dependendo do caso, pode demorar milênios) para se decompor. Ainda está vagando nos oceanos a primeira fralda descartável que inventaram. Sob conceitos como “modernidade” e “praticidade”, o planeta segue sendo destruído pelo homo sapiens, para o desespero de tantas outras espécies – isto é, as que ainda estão vivas, pois muitas já desapareceram.

A expressão “cocô de índio” é usada para se referir a algo que “todo mundo sabe que existe, mas ninguém nunca viu”. Não está no dicionário Houaiss, mas está por aí, até mesmo na internet. É uma expressão pejorativa, que se pretende engraçada por remeter ao baixo corporal, e sintomática do preconceito sobre sujeitos e povos indígenas, que desconsidera a complexidade de suas culturas e os diferentes modos de ser indígena no Brasil de ontem e de hoje. Esse “índio” é o “índio genérico”, tão criticado por lideranças e intelectuais indígenas, indigenistas, antropólogos etc. Lida a contrapelo, a expressão me remete à pergunta de Davi e à resposta de Ailton. E a “civilização” é que passa vergonha por não esconder a merda que caga. Esse esconder bem a merda que se caga indica, nessa leitura, uma relação ampla com o meio em que se vive, onde todos os seres, humanos e não humanos, devem ser cuidados, e a terra não é um recurso disponível para a voragem do dinheiro.

Em mais de uma situação, Jair Bolsonaro se referiu a “cocô de índio”, mas não no sentido de coisa existente e não vista. Um resumo da sequência de fatos, com suas fontes, postado em 19 de agosto de 2019 e posteriormente atualizado, pode ser encontrado no site Mobile (Movimento Brasileiro Integrado pela Liberdade de Expressão Artística) [1]:

Em cerimônia de inauguração da duplicação da BR-116, o presidente Jair Bolsonaro afirma que o ‘cocozinho petrificado de um índio’ atrapalha a realização de obras. O Presidente faz referência a uma construção no Paraná que depende de laudo de órgão governamental para prosseguir, mas não fornece informações precisas. Em caso de áreas indígenas, a Funai tem a prerrogativa constitucional de participar e produzir laudos nos licenciamentos de obras; em caso de áreas de valor arqueológico, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) deve intervir. O Presidente complementa sua fala: ‘tem que integrar o índio na sociedade e buscar projeto para nosso país’, como também já havia mencionado em outras vezes. No mês seguinte, o presidente se manifesta contrário à demarcação de terras e, em novembro, é denunciado no Tribunal Penal Internacional por incitar a violência contra comunidades indígenas. Na semana anterior, Bolsonaro recomendou, de forma irônica, que as pessoas fizessem ‘cocô dia sim, dia não’ para combater a poluição ambiental. No ano seguinte, em reunião ministerial, Bolsonaro volta a citar ‘coco petrificado’ como impeditivo para realização de obra e critica a atuação do Iphan, afirmando que o órgão ‘para qualquer obra do Brasil’. Na oportunidade, a Sociedade de Arqueologia Brasileira afirma que o Presidente demonstra ‘total falta de conhecimentos dos processos e nenhuma preocupação com as heranças culturais deixadas’.

Uma atualização desse resumo indicaria o terrorista que cagou, literalmente, na sede do Supremo Tribunal Federal nos atos golpistas do dia 08 de janeiro e, na sequência, a internação de Bolsonaro nos Estados Unidos por não conseguir cagar. A fixação do ex-presidente com cocô, intestino e outras merdas mais não passou despercebida aos seus detratores, que fizeram diversas variações do sobrenome Bolsonaro com a palavra “bosta”. Apesar de todos esses seres humanos fazerem parte de uma mesma espécie, o homo sapiens, como diz Ailton Krenak, a pergunta de Davi, a resposta de Ailton e os usos da expressão “cocô de índio” na sociedade dita civilizada indicam formas diferentes de coabitar o mundo com outros seres. As falas de Davi e Ailton relembram a todo o tempo que é preciso cuidar do lugar em que vivemos, deixar pegadas suaves na terra, passar por ela sem sermos notados. A perspectiva ideológica do ex-presidente e seus apoiadores, ao contrário, em nome de uma abstração naturalizada chamada “desenvolvimento”, anula a subjetividade de pessoas, povos, seres diversos e deixa marcas irreparáveis da presença humana no mundo. E, apesar de o bolsonarismo ilustrar muito bem essa pulsão destrutiva do mundo, a defesa de progresso, desenvolvimento, modernidade e outras palavras como essas é discurso hegemônico na sociedade brasileira, até onde posso perceber.


Na loja de aviamentos

Entrei na loja de aviamentos e escutei a palavra “Yanomami”. Uma mulher falava enfaticamente sobre o genocídio Yanomami, enquanto a outra questionava por que “só agora” a imprensa estava falando no assunto. Uma atendente me olhava sorrindo e perguntava: “em que posso te ajudar?”.

A primeira mulher, loira, magra, tubinho e tailleur, salto alto, dizia que era promotora de justiça e, enquanto servidora pública, se via no dever de denunciar, onde quer que estivesse, a política genocida do governo Bolsonaro, que tinha resultado na catástrofe vivida pelos Yanomami com a invasão de garimpeiros. Explicava que era “de esquerda”, embora nada na sua vida justificasse essa escolha, a não ser o fato de ter visto, com os próprios olhos, a vida das pessoas pobres, com quem trabalhava, melhorar ao longo dos governos Lula. Ela era nascida em Brasília e tinha se criado no Ceará porque os pais, em altos cargos públicos, foram transferidos para Fortaleza. Sempre teve vida de “marajá” e continuava tendo, “graças a Deus”, morando nas Dunas, com quatro carros na garagem. Ser “de esquerda”, para ela, significava que “eu quero distribuir riqueza, e não pobreza”, “quero que todos tenham um alto padrão de vida”. Dizia que tinha feito mestrado em ciências políticas e que a outra precisava se informar, questionar o que chegava através de redes sociais. Sacou o celular e mostrou os posts sobre os Yanomami feitos por uma jornalista reconhecida.

De costas para as duas, eu tentava me lembrar o que tinha ido comprar ali. Linha branca, zíper branco. A atendente por trás do balcão, de camisa rosa, cabelos escovados, me perguntava: “E o que mais?”. Seus olhos também prestavam atenção à conversa das duas e sorriam nas extremidades. Grandes olhos redondos e brilhantes. Era uma sexta-feira de Oxalá.

A outra mulher, dona da loja, cabelos castanhos presos em rabo-de-cavalo, camiseta, calça jeans e tênis, dizia que “não tinha conhecimento”, mas que, na sua opinião, o problema dos governos PT era o “estilo comunista”. Era contra o bolsa família, que, segundo ela, dava dinheiro a quem não quer trabalhar. A promotora explicou que não se tratava disso, de dar dinheiro, ela tinha lido a respeito. Quem não trabalha é porque já “não gosta de trabalhar”; além do mais, quem tinha o bolsa família tinha que manter os filhos na escola etc.

Lembrei que em Fortaleza o acampamento golpista na frente do exército exibia, orgulhosamente, uma enorme faixa para inglês ver com os dizeres: “NOT COMMUNISM”. Tentei entrar na conversa para falar sobre esse mito requentado, que justificou as ditaduras no Brasil do século XX (a de Vargas e a civil-militar) e que agora estava sendo manipulado para justificar mais uma. A dona da loja fez questão de me explicar que as duas não estavam “brigando”, que na democracia é assim, as pessoas simplesmente têm opinião diferente. Eu diziam aham, sim, mas… Queria voltar à questão do comunismo. A concorrência pelos turnos de fala estava acirrada. Voltei a olhar nos olhos da atendente e foquei no que tinha ido buscar.

A promotora contou que “era meio blogueira” e que costuma fotografar os próprios looks antes de sair para o trabalho. Um dia, alguém veio questioná-la nas redes sociais, perguntando como alguém “de esquerda” aparecia usando um óculos da marca X. Ela respondeu: “meu amor, você não olhou direito; além do óculos da marca X, estou usando um tênis Y, uma bolsa Z” etc. Essa história tinha a função – pelo que entendi – de tranquilizar a dona da loja sobre o assunto comunismo, além de dizer que era perfeitamente viável no Brasil ser “de esquerda” e não questionar o capitalismo. Ela dizia: “sim, sou esquerda caviar. Qual o problema?”.

Lembrei dos botões. Brancos e verdes. Mostrei para a atendente os tecidos, todos brancos, que tinha comprado e ela me ajudou a escolher os acessórios. Paguei minhas coisinhas e me despedi da atendente. A promotora e a dona da loja estavam na saída. A promotora dizia que não tinha “político de estimação” e que criticaria Lula quando fosse necessário; a dona da loja dizia que também não tinha… A promotora disse que sua mãe afirmava a mesma coisa, mas quanto mais o Bolsonaro aprontava, mais ela o defendia. E comentou comigo que não sabia por que sua mãe tinha se tornado bolsonarista; realmente, não conseguia entender. A dona da loja continuou elencando pautas para dizer que não necessariamente defendia o Bolsonaro, fazendo críticas ao comunismo, ao aborto, ao bolsa família, à liberdade de imprensa, ao marxismo cultural, defendeu voto impresso e disse que era possível ter havido fraude nas eleições de 2018, porque Bolsonaro deveria ter vencido no primeiro turno, e não no segundo, como aconteceu. Voltou à questão da mídia, que “só agora” dava repercussão ao caso Yanomami.

A promotora falava colocando uma das mãos sobre o meu braço, como se eu fosse um ponto de apoio aos seus argumentos. Pedi para falar. Comecei dizendo que estudava a questão indígena e que o Estado brasileiro sempre teve uma política anti-indígena, desde 1.500, mas… A dona da loja disse: “ah, agora sim eu entendi. Agora faz sentido, agora você me explicou uma coisa importante. Então é isso, foi sempre assim, sempre”. Ainda tentei dar sequência ao meu raciocínio, para dizer que os alertas sobre a questão das invasões dos garimpeiros à terra Yanomami nos últimos anos estão devidamente documentados; ia falar sobre Davi Kopenawa, sobre o dossiê publicado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) em 2021 considerando o governo Bolsonaro a pior conjuntura já enfrentada pelos indígenas no Brasil desde a colonização etc. Tudo isso para mostrar o equívoco da tal hipótese, veiculada diretamente por Bolsonaro, de que a questão Yanomami era uma invenção da esquerda e também para lembrar o quanto Bolsonaro reiteradamente defendeu o genocídio indígena. Mas a dona da loja já tinha se apegado a um trecho da minha fala e não me permitiu continuar. Fui embora desapontada com minha estratégia.


A impotência da metáfora

Em A escola da reconquista, Mestra Mayá conta sua trajetória de luta pela demarcação dos territórios Pataxó Hãe Hãe Hãe, no sul da Bahia, que somaram 396 retomadas. Sem espaço físico adequado para ensinar, Mayá desenvolveu um método que fazia de qualquer espaço um espaço de aprendizado. Se os alunos não iam à escola, porque a escola não existia, Mayá ia até os alunos nos territórios de retomada. De um território a outro, a fala e a escuta se tornaram formas de aprendizado, “lembrando que nosso povo ainda existe, que nosso povo tem ainda uma forma de viver, de caminhar” (Andrade, 2021, p. 22).

A certa altura de sua vida, Mayá transitava toda semana da aldeia, onde dava aula, até Palmira, onde trabalhava na feira. Um dia o ônibus em que ela estava foi cercado por pistoleiros a mando de Marco Vanderlei, um fazendeiro da região. Queriam matar Mayá porque ela levava recado quando era necessário buscar ajuda: “quando as lideranças não podiam sair fora, quem saía para avisar as ONGs e o pessoal que ajudava era eu” (Andrade, 2021, p. 58). 

Em meio à abordagem dos pistoleiros, Mayá começou a cantar: “Eu sou índio guerreiro / Que vivo da mata a caçar / Quando eu chego neste pé de serra / Eu vejo as araras voar // Olho o canto desta arara / É um canto de muita beleza / Eu não posso destruir / As coisas da nossa natureza” (Andrade, 2021, p. 60). A letra do canto parece uma idealização do indígena, em acordo com os estereótipos da vida na mata, da comunhão com a natureza etc. Ela usa inclusive o termo “índio”, recusado por muitas/os intelectuais indígenas porque serviria para reforçar estereótipos. Mas a leitura de que este canto idealiza ou estereotipa o indígena só pode ser feita se desconsiderarmos o contexto em que ele foi cantado. Voltemos à narrativa de Mayá.

Os pistoleiros ficaram intrigados: “– Ela, no meio dessa guerra, e cantando?” (Andrade, 2021, p. 60). Sem entender a aparente tranquilidade de Mayá, que cantava à beira da morte, os pistoleiros começaram a abandonar o local: “Não ficou um. Todo mundo foi saindo. Foram saindo pouco a pouco. As araras não voam? Elas tiveram que se espalhar. Eles se tornaram araras. Eles eram feras, mas eu desejei que fossem araras. Araras não matam ninguém” (Andrade, 2021, p. 61 – grifo meu).

Nesta e em outras ocasiões, Mayá comenta a importância do canto como arma de luta: “As músicas têm um grande poder. Elas são muito poderosas. Para mim, elas têm um sentido muito grande. São a minha arma mais forte” (Andrade, 2021, p. 61). O livro, por isso, dá destaque às suas composições, e áudios de Mayá cantando podem ser ouvidos no site da Teia dos Povos, que editou o livro [2]. Na cena descrita, o canto é composto no calor da situação, depois de ela ter pensado em xingar os pistoleiros, ideia que logo descartou. A música sobre araras que voam quando Mayá chega no pé de serra transforma os pistoleiros em criaturas inofensivas, incapazes de matar. Mayá diz que se sentiu mesmo uma “índia guerreira”, pois estava no meio da “guerrilha”. Na letra, as araras voam e também cantam; a beleza do canto sugere que a natureza deve permanecer existindo: “Eu não posso destruir / As coisas da nossa natureza”. A transformação dos pistoleiros em araras não acontece literalmente; e é assim que ela interfere na experiência narrada, alterando seu desfecho: os pistoleiros chegaram como feras e saíram voando como araras. A comparação implícita poderia sugerir que se trata de uma metáfora.

A gramática que me acompanhou durante o ensino fundamental e médio, Gramática contemporânea da língua portuguesa, de José de Nicola e Ulisses Infante (1992, p. 441), informa que a metáfora e a metonímia são figuras de palavra que consistem na “substituição de uma palavra por outra, isto é, no emprego figurado, simbólico, de uma palavra por outra, quer por uma relação muito próxima (contiguidade), quer por uma associação, uma comparação, uma similaridade”. A metáfora seria uma comparação implícita, assim definida, segundo os autores, por Aristóteles: “consiste em transportar para uma coisa o nome da outra (…) uma espécie de comparação à qual falta a locução comparativa” (Nicola; Infante, 1992, p. 441). Essa ideia de “transporte” está na própria etimologia da palavra: “do grego meta, ‘mudança’, ‘alteração’ + phora, ‘transporte'” (Nicola; Infante, 1992, p. 441).

Se optássemos por qualificar o sentido de “araras” no canto de Mayá como metafórico, diríamos que se trata de um emprego simbólico do termo, em que uma palavra foi substituída por outra sem a utilização da locução comparativa. Nesse caso, o sentido da experiência narrada seria empobrecido. Vamos começar de novo.

Mayá, acossada por pistoleiros, canta uma música sobre araras que voam quando ela chega e sobre a beleza do canto da arara e da natureza em geral. Os pistoleiros estranham a cena e vão embora. A conclusão de Mayá é que “Eles se tornaram araras”. Essa transformação não acontece nem no plano literal nem no plano simbólico; essa transformação extrapola a figura de palavra e tem efeitos radicais na experiência narrada [3], pois ela salva Mayá da morte. Isso seria suficiente para questionar o qualificativo de metafórico às “araras” de Mayá. Mas há mais coisas aí.

A relação entre pistoleiros e araras está fundada num tipo de percepção em que o trânsito entre humanos e não-humanos (viventes, entes e entidades) não acontece de forma hierárquica, ao contrário da perspectiva dominante. A possibilidade de tornar um ser humano, mais do que semelhante, identificado a uma arara ou a uma fera, como Mayá expressa, está fundada no respeito aos animais, considerados produtores de saber e de cultura. Tanto é que a beleza do canto da arara é saudada na letra da música; a arara não mata ninguém e não deve ser morta. Os pistoleiros, identificados às araras e não mais às feras, compartilham da condição de seres que também podem produzir beleza e, portanto, a eles também seria possível estender a defesa da vida, porque são, como os demais, “coisas da nossa natureza”.

No contexto do canto de Mayá, ser uma “coisa” da natureza não tem a ver com objetificar as subjetividades. Em outro canto, diz Mayá: “Terra meu corpo / Terra meu corpo // Água meu sangue / Água meu sangue // Ar meu sopro / Ar meu sopro // E fogo meu espírito / E fogo meu espírito” (Andrade, 2021, p. 75). A identificação de si com os quatro elementos da natureza é tema recorrente nas poéticas indígenas. Como outras mulheres (Ellen Lima, Aline Rochedo Pachamama, Eva Potiguara e Denizia Kawany Fulkaxó, por exemplo), Mayá menciona os quatro elementos da natureza como constituintes de seu corpo físico e espiritual. Essa filiação aos elementos naturais ou a entidades e seres vivos e não-vivos me parece fundamental para entender as definições de pertencimento étnico elaboradas nos textos indígenas. A ancestralidade – quando se liga a elementos como terra, água, ar e fogo – aponta para um tempo histórico de longa duração, e se abre para um futuro em que seres vivos e não-vivos coabitarão o planeta de forma construtiva e plena.

A redução de “araras” a um sentido metafórico parece afastar essas possibilidades de leitura. Para mim, não há nenhum problema em recusar essa redução e afirmar a impotência da metáfora para pensar a poética de Mayá. O problema está em que a ausência de metáfora é tomada como critério para pôr em questão a “literariedade” de um texto. 

Existe um longo e complexo debate sobre a metáfora em teoria literária, que não cabe esboçar aqui; recorri ao conceito dado por um livro didático para enfatizar que a noção de metáfora aparece muito cedo em nossas vidas escolares. Na gramática de Nicola e Infante, a metáfora, apresentada como recurso de linguagem, não está associada diretamente ao discurso literário; porém, no cotidiano das discussões sobre literatura, em ambientes acadêmicos ou não, a ideia de linguagem literária não vive sem a metáfora, figura considerada mais sofisticada do que a comparação explícita. Em mais de uma ocasião, vi textos indígenas serem desqualificados por serem supostamente “literais”, sem metáfora, sem trabalho com a linguagem.

Textos como os de Mayá problematizam os operadores da crítica literária hegemônica e pedem para ser escutados nos seus próprios termos. Como disse Graça Graúna, a literatura indígena contemporânea tem sido frequentemente invisibilizada, porque existe um preconceito construído historicamente contra seus autores, mas também pelos contrapontos que ela endereça ao discurso hegemônico: “Gerando a sua própria teoria, a literatura escrita dos povos indígenas no Brasil pede que se leiam as várias faces de sua transversalidade […]” (Graúna, 2013, p. 19).


Notas

[1] Disponível em: https://movimentomobile.org.br/caso/bolsonaro-utiliza-expressao-pejorativa-para-se-referir-a-
artefatos-arqueologicos/

[2] Acessar https://teiadospovos.org/a-escola-da-reconquista

[3] Chamo a atenção para a experiência narrada, e não para a experiência vivida, porque estou me centrando no texto (no relato e na letra da música). Partilho do pressuposto (psicanalítico, ao menos) de que nenhuma linguagem consegue traduzir a contento a “realidade”.

Referências bibliográficas

ANDRADE, Maria Muniz de (Mayá). A escola da reconquista. Arataca, BA: Teia dos Povos, 2021.

GRAÚNA, Graça. Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2013.

NICOLA, José de; INFANTE, Ulisses. Gramática contemporânea da língua portuguesa. 9a edição. São Paulo: Scipione, 1992.


Fotografia: Floresta Virgem – Marc Ferrez (Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles).

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